A Igreja chama a graça que é parte da justificação de graça santificante. Santo Agostinho a definia como “justiça de Deus, não enquanto Ele mesmo é justo, mas enquanto nos torna justos” (1).

“A graça santificante é um dom habitual, uma disposição estável e sobrenatural, que aperfeiçoa a alma, mesmo para a tornar capaz de viver com Deus e de agir por seu amor” (2).

Esta justiça é interior, inere em nossa alma, adere-lhe intimamente, nela é infundida pelo Espírito Santo; ela a santifica, a torna justa, a cura do pecado, a faz participante da natureza divina. Esta justiça provém de Cristo, mas não é a mesma Dele, nos une a Ele e nos faz participantes de sua plenitude de graça, pois Dele provém toda a graça que se fazem os santos, qual a relação de vida entre os ramos e a videira. Enfim, tão grande favor e socorro gratuito de Deus nos torna filhos adotivos Dele. Por tudo isso, o Concílio de Trento define a justificação como sendo:

“uma passagem daquele estado em que o homem, nascido filho do primeiro Adão, [passa] para o estado de graça e de adoção de filhos (Rom 8, 15) de Deus por meio do segundo Adão, Jesus Cristo, Senhor Nosso” (3).

Martinho Lutero, por sua vez, considerava a doutrina da justificação aquele artigo o qual “estando de pé, a Igreja permanece de pé; (e) se esse artigo caí, a Igreja caí” (4). Ele a entendia, contudo, de maneira diversa daquela entendida por Santo Agostinho. Ainda que ambos concordassem que Deus concede, por misericórdia, uma justiça aos pecadores que os justifica, vimos que, para usar as palavras do teólogo e historiador protestante Alister McGrath, Santo Agostinho localizava essa “justiça justificadora” dentro dos crentes, enquanto que Lutero insistia que ela permanecia fora deles.

McGrath detalha então a diferença:

“Na concepção de Agostinho, Deus concede a justiça justificadora ao pecador de tal maneira que ela se torna parte da pessoa dele. Como resultado, embora se originando fora do pecador, essa justiça se torna parte dele” (5).

Isso corresponde à definição anterior de “justiça de Deus”, dada por Santo Agostinho (1), e à explicação do Concílio de Trento:

“Assim, portanto, a nossa própria justiça não se estabelece como própria, como se de nós decorresse, e também não se ignora ou não se repudia a justiça de Deus (Rom 10,3). Esta justiça é denominada a nossa, porque somos justificados por ela, que inere intimamente em nós (cân. 10 e 11). E esta mesma é a de Deus, em vista dos merecimentos de Cristo infundida em nós” (6).

Ora, Lutero se contrapõe a isso. Em sua concepção:

“a justiça em questão permanece fora do pecador: é uma justiça alheia. Deus trata, ou ‘reconhece’, essa justiça como se fosse parte da pessoa do pecador. Em suas palestras sobre Romanos em 1515 e 1516, Lutero desenvolveu a ideia de que a “justiça alheia de Cristo” é imputada – não transmitida – ao crente pela fé, como base para sua justificação. (…) Desse modo, de acordo com Lutero, os crentes são justos por causa da justiça alheia de Cristo que lhes é imputada. Ou seja, ela é considerada como se fosse deles por meio da fé. (…) Por meio da fé, o crente é revestido com a justiça de Cristo. (…) Pecado e justiça coexistem desse modo: permanecemos pecadores interiormente, mas somos justos por fora, aos olhos de Deus” (7).

Dessa forma, enquanto que Trento diz, com Santo Agostinho, que na justificação o pecador é tornado justo, a compreensão protestante da natureza da justificação é que o pecador é declarado justo. Resume McGrath:

“Ao invés de ser o processo pelo qual o crente é tornado justo, envolve uma mudança em seu status, ao invés de em sua natureza” (8).

Tornado justo em contraposição a considerado justo (9).  Não se trata de que na doutrina protestante o crente não seja feito justo, apenas ela distingue deliberadamente que a justificação é aquele ato externo pelo qual Deus declara o pecador justo, enquanto que a santificação ou regeneração é “o processo interno de renovação dentro dos homens” (10) ou o “processo de ser feito justo” (11). Para Santo Agostinho, e conforme ensina a Igreja, justificação e santificação são “apenas aspectos diferentes da mesma coisa” (12).

Essa distinção entre justificação e santificação, a primeira consistindo numa declaração externa ao homem e que não o muda, e a segunda consistindo num processo que ocorre dentro homem e o muda, jamais foi, diz McGrath:

“reconhecida antes na história da doutrina cristã. Uma descontinuidade fundamental foi introduzida na tradição teológica ocidental onde nenhuma jamais havia existido, ou jamais sido contemplada, antes” (13).

E ainda:

“[ela] marcou uma ruptura total com o ensino da Igreja até aquele momento. Do tempo de Agostinho em diante, a justificação sempre foi entendida como se referindo tanto ao evento de ser declarado justo como ao processo de ser tornado justo. (…) Como isso foi assumido praticamente por todos os principais reformadores na sequência, tornou-se uma diferença-padrão entre os protestantes e os católicos dali em diante” (14).

Podemos ver a doutrina protestante a respeito da justificação e da santificação, em que se vê a distinção entre ambas, por exemplo, na Fórmula de Concórdia (15), luterana, e na Confissão de Westminster (16), reformada. As implicações dessa doutrina protestante são importantíssimas. Uma análise mais detalhada dela, seja biblicamente, seja a partir da Tradição, será objeto de outros artigos, da mesma forma que a doutrina católica o será.

Pois bem, tendo isso em mente, sabe-se que o Santo Padre, em vôo oriundo da Armênia em 26 de junho de 2016, respondendo com espontaneidade às perguntas dos jornalistas, afirmou o seguinte:

“E hoje Luteranos e Católicos, Protestantes, todos nós concordamos sobre a doutrina da justificação. Nesse ponto, que é muito importante, ele (Martinho Lutero) não errou”.

O texto completo pode ser visto aqui. É óbvio que os comentários que o Santo Padre faz nessas entrevistas, frequentemente de difícil compreensão (17), não gozam de autoridade magisterial. Mas o que pensar dessa opinião? Pelo que foi visto anteriormente, com certeza trata-se de uma opinião errônea.

Um dos motivos, como visto, é que a doutrina protestante sustenta que a causa formal da justificação, a justiça justificadora, nas palavras de Alister McGrath, é a própria justiça de Cristo, externa aos homens e a eles imputada. Ou seja, eles são justos por causa que a própria justiça de Cristo é considerada como se fosse deles, permanecendo interiormente pecadores.

Para a Igreja, somos justos não pela justiça da própria videira, que é Cristo, mas pela justiça que provém de Cristo e torna a nós, que somos seus ramos, justos de fato e por isso é nossa. Convém relembrar:

“Assim, portanto, a nossa própria justiça não se estabelece como própria, como se de nós decorresse, e também não se ignora ou não se repudia a justiça de Deus (Rom 10,3). Esta justiça é denominada a nossa, porque somos justificados por ela, que inere intimamente em nós (cân. 10 e 11). E esta mesma é a de Deus, em vista dos merecimentos de Cristo infundida em nós” ou “enquanto Ele nos torna justos”.

A vida dos ramos depende totalmente da videira, mas é vida verdadeira. A justiça pelo qual somos justos é nossa, no sentido já explicado, e não a própria justiça do Filho de Deus considerada como se fosse nossa.

O outro motivo, talvez ainda mais visível, é que o Concílio de Trento condena expressamente a doutrina protestante da justificação nos cânones sobre a justificação, números 10 e 11:

Cân. 10. Se alguém disser que os homens são justificados sem a justiça de Cristo, pela qual ele mereceu por nós; ou que é por ela mesma que eles são formalmente justos — seja excomungado

Cân. 11. Se alguém disser que os homens são justificados ou só pela imputação da justiça de Cristo, ou só pela remissão dos pecados, excluídas a graça e a caridade que o Espírito Santo infunde em seus corações e neles inerem; ou também que a graça pela qual somos justificados é somente um favor de Deus — seja excomungado

Só na verdade é que haverá de se ter concordância entre as doutrinas. E a verdade é esta: a doutrina católica discorda da doutrina protestante neste e em outros pontos, ainda que não em tudo.


(1) S. Agostinho, De Trin. 14, 12, 15 (PL 42, 1048).

(2) Catecismo da Igreja Católica, número 2000.

(3) Concílio de Trento, VI Sessão, Capítulo 4.

(4) Edição Weimar (WA) 40/3.352.3.

(5) Alister E. McGrath, O Pensamento da Reforma, p. 151.

(6) Concílio de Trento, VI Sessão, Capítulo 16.

(7) Alister E. McGrath, O Pensamento da Reforma, p. 151.

(8) Alister E. McGrath, Iustitia Dei, 3a edição, p. 212-213.

(9) Alister E. McGrath, O Pensamento da Reforma, p. 153.

(10) Alister E. McGrath, Iustitia Dei, 3a edição, p. 212-213.

(11) Alister E. McGrath, O Pensamento da Reforma, p. 153.

(12) ibid.

(13) Alister E. McGrath, Iustitia Dei, 3a edição, p. 217.

(14) Alister E. McGrath, O Pensamento da Reforma, p. 153.

(15) Livro de Concórdia, Fórmula de Concórdia, III (Da justiça da fé diante de Deus), número 2.

(16) Confissão de Fé de Westminster, capítulos 11 (Da justificação) e 13 (Da santificação).

(17) Fr. Dwight Longenecker, “Clarity, not just charity, key on Martin Luther“.