Esta série de artigos compreende a tradução de todos os capítulos do livro clássico de Jacques Bossuet: “Exposição da doutrina da Igreja Católica em questões controversas”. Confira o Capítulo 01 aqui. Relembro que, por se tratar de uma tradução livre, peço a benevolência do leitor e a bondade de me indicar aqueles pontos que devo observar para melhorar a tradução.

Exposição da doutrina da Igreja Católica em questões controversas

Jacques-Bénigne Bossuet

Capítulo 02 – QUE OS CATÓLICOS CREEM, DE ACORDO COM O RECONHECIMENTO DOS PROTESTANTES, EM TODOS OS ARTIGOS FUNDAMENTAIS DA CRISTANDADE.

Começando, então, pelos artigos principais e fundamentais da fé cristã: é um fato, que nem mesmo a hostilidade do protestante bem instruído pode presumir pôr em questão, que, ao menos quanto a estes, a Igreja Católica sinceramente os crê e publicamente os confessa.

Se o protestante sustenta que os artigos fundamentais da Cristandade consistem em crer que seja necessário adorar o Deus Único, Pai, Filho e Espírito Santo; e que devamos, além disso, confiar somente Nele, pelos méritos e pela mediação de Seu Único Filho, que se encarnou, foi crucificado para nossa salvação, e surgiu novamente para a vida, – se o protestante concebe que estes são os artigos fundamentais da fé cristã, então ele deve, da mesma forma, reconhecer que, como católicos, nós, todos nós, os professamos. Ou, se aos artigos acima, ele deseja unir, da mesma forma, aqueles que estão contidos no Credo dos Apóstolos, ele também saberá que nós cremos em todos estes, sem nenhuma exceção, ou restrição; e que inclusive nós os entendemos em seu significado mais puro e genuíno.

Daillé, um dos mais eruditos e, ao mesmo tempo, um dos antagonistas mais inveterados da Religião Católica, compôs uma obra intitulada “La foi fondée sur les Saintes Escritures”. Nela, após ter exposto todos os artigos das igrejas protestantes, ele acrescenta:

“estes artigos nem sequer são disputados. A própria Igreja de Roma professa crê-los. Na realidade, a Igreja de Roma não crê em todas as nossas opiniões; mas nós cremos em todos os seus artigos de fé”.

Consequentemente, a menos que este ministro, ou o protestante, queira destruir a sua própria fé, ele não pode, com qualquer coisa semelhante à consistência, fingir negar que os católicos não creem realmente em todos os artigos fundamentais da revelação cristã.

De fato, o ponto é por demais manifesto para ser posto em questão de forma razoável, embora até mesmo Daillé, ou qualquer outro adversário, não tenha permitido isto, como eles o fizeram. A coisa fala por si mesma. Não há um protestante, salvo o estupidamente ignorante, ou o obstinadamente preconceituoso, que não saiba que o católico crê em cada um dos artigos que as igrejas reformadas consideram como fundamentais (1). A sinceridade protestante tem concedido isto frequentemente; ao mesmo tempo em que lamenta ser contestada, de forma obstinada, por aquele preconceito e aquela ignorância.

Não obstante as vantagens que derivamos das concessões acima, há, contudo, alguns protestantes que, fingindo nos separar deles, contestam que nós destruímos os artigos fundamentais, em que cremos, ao admitirmos outros, ao mesmo tempo deles, e que com eles estão em desacordo. Isto eles usam para provar, pelas consequências, o que eles mesmos, não nós, deduzem de nossas doutrinas. Mas veja, o próprio Daillé, que eu acabei de citar, menos por causa de sua instrução do que pelo bom senso e pela sabedoria de seu testemunho, instrui seus irmãos protestantes sobre qual opinião eles devem formar sobre estas consequências, até mesmo sobre as suposições, que eles podem realmente retirar de nossos princípios. Numa carta que escrita para Monglat, sobre o assunto de sua escusa, ele diz:

“Ainda que a opinião dos luteranos a respeito da Eucaristia, assim como a dos católicos, implique, em nossas ideias, a destruição da humanidade de Jesus Cristo, ainda assim, seria uma calúnia imputar esta consequência a eles, visto que eles formalmente negam isto”.

Não há, de fato, na economia cristã, nada mais essencial que o reconhecimento da realidade da natureza humana de Jesus Cristo. E, ainda assim, embora os luteranos mantenham uma doutrina sobre a qual os calvinistas inferem a destruição dessa verdade, e inferem por deduções que, para eles, são evidentes, e mesmo tendo em vista estas considerações, eles não recusam a comunhão recíproca.

“A opinião deles”, diz Daillé, “dado que negam aquela consequência odiosa, é inofensiva e desprovida de veneno”.

E foi desta forma que o Sínodo de Charenton, realizado em 1631, até mesmo admitiu os luteranos para a santa mesa:

“Porque”, diz o Sínodo, “eles admitem todos os princípios e artigos fundamentais da religião”.

É, portanto, uma máxima fixa e estabelecida entre protestantes que, quanto aos objetos da religião, não são as deduções que um adversário pode fazer de qualquer doutrina que devem ser consideradas, mas somente aquelas que seus confessores reconhecem ou seus defensores inculcam.

Quando, portanto, a malevolência do preconceito protestante finge, por inferências, por ele mesmo deduzidas, que nós não honramos suficientemente a grandeza de Deus ou a mediação de Jesus Cristo; ou a infinita dignidade de Seu sacrifício, ou a superabundância de seus méritos; quando ela finge e, com audácia, afirma isto, quão facilmente nós não devemos nos defender apelando para essas máximas que, como acabo de comentar, os protestantes respeitam e seguem em suas relações recíprocas? Nós devemos, nestas ocasiões, mostrá-los que, precisamente como eles mesmos consideram “uma calúnia” atribuir, a qualquer seita protestante, consequências que aquela seita nega, é, da mesma forma, um ato de injustiça imputar às opiniões católicas o que os católicos condenam.

Agora, contudo, nós devemos proceder à simples exposição de nossas doutrinas, em vista a mostrar aos adversários de nossa religião que, longe de destruir, direta ou indiretamente, qualquer um dos artigos fundamentais da Cristandade, nós, pelo contrário, os estabelecemos sobre um fundamento tão forte, e os expomos com uma tal claridade, que ninguém, exceto o preconceituoso mais inveterado, pode, sem extrema injustiça, presumir negar que nós, ao menos, os entendemos com precisão e os explicamos com fidelidade.

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(1) “Sob o Papado”, diz o próprio Lutero, “há muitas coisas boas: de fato, tudo o que é bom no Cristianismo. Eu digo, além disso, que sob o papado está o verdadeiro Cristianismo; até o próprio núcleo do Cristianismo” (Livro contra os Anabatistas).

“À Igreja de Roma”, diz nosso Hooker, “é, sem dúvida, para ser atribuída uma parte da Casa de Deus; e nós, de bom grado, a reconhecemos como sendo da Família de Jesus Cristo” (Eccl. Pol.).

“No julgamento”, diz o Dr. Some, “de todos os homens eruditos, e todas as igrejas reformadas, há, no papismo, uma Igreja; um ministério; um Cristo verdadeiro. E se você pensa que todo tipo de papista, que morre na Igreja papista, está condenado, você pensa de forma absurda e diverge do julgamento dos protestantes eruditos.” (Def. contra Penry).