Há poucos dias o apologista sênior do Catholic Answers, Jimmy Akin, cujo trabalho é bastante louvável, comentou em seu Facebook que pensava em fazer um programa ao vivo para responder as perguntas mais estranhas sobre a fé católica que os ouvintes poderiam ter. Ele pergunta se seus seguidores tem alguma e dá como exemplo a seguinte: a segunda vinda de Cristo nos impediria de ter colônias espaciais? As perguntas que se seguiram foram realmente das mais estranhas; mas o que foi ainda mais estranho foi o seguinte comentário (1):
“Um metodista uma vez disse (…) que quando os católicos fazem o sinal da Cruz, eles estão prestando homenagem ao deus do norte, do sul, do leste e do oeste”.
Logo em seguida foi respondido por outro, dessa vez oriundo de um diácono:
“Eu ouvi algumas coisas realmente estranhas vivendo na área rural do leste de Tennessee (minha favorita é que as cinzas da Quarta-Feira de Cinzas são de bebês mortos), mas eu tenho que admitir que essa é nova para mim!”.
Sabe-se que “quando o cristão começa seu dia, suas orações e suas ações com o sinal da cruz – ‘Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém’, ele dedica a jornada à glória de Deus e invoca a graça do Salvador, que lhe possibilita agir no Espírito como filho do Pai. O sinal da cruz nos fortifica nas tentações e nas dificuldades” (2). Sabe-se ainda que “o gesto de cobrir-se com cinza tem o sentido de reconhecer a própria fragilidade e mortalidade, que precisa ser redimida pela misericórdia de Deus” (3) e que elas provém da queima dos ramos abençoados no Domingo de Ramos do ano anterior. Resta então perguntar: “De qual Igreja Católica estas pessoas falam?”
Isto não se resume a casos isolados. Esta caricatura do ensinamento da Igreja é abundante. Vejamos mais alguns exemplos:
“É dito que os católicos romanos tem uma mística; quer dizer, um complexo de crenças e práticas quase-místicas. Essa mística é evidente em como os católicos reverenciam o Papa, adoram e oram a Maria, rezam o rosário (…)” – PhD Alvin J. Schmidt (4).
Isto é claramente contraditório com o ensinamento da Igreja:
“A santíssima Virgem ‘é com razão venerada pela Igreja com um culto especial. […]. Este culto […], embora inteiramente singular, difere essencialmente do culto de adoração que se presta por igual ao Verbo Encarnado, ao Pai e ao Espírito Santo, e favorece-o poderosamente’ (5), visto que “Adorar a Deus é reconhecê-Lo como tal, Criador e Salvador, Senhor e Dono de tudo quanto existe, Amor infinito e misericordioso. ‘Ao Senhor teu Deus adorarás, só a Ele prestarás culto’ (Lc 4, 8) – diz Jesus, citando o Deuteronómio (Dt 6, 13). Adorar a Deus é reconhecer, com respeito e submissão absoluta, o ‘nada da criatura’, que só por Deus existe.” (6).
“A contrição faz merecer alguma coisa? Os papistas de fato mantém que o homem merece a graça por meio de tais dores e terrores, se eles ainda amam a Deus” – Dr. Leonhard Hutter (7).
A Igreja define a contrição como: “uma dor da alma e uma detestação do pecado cometido, com o propósito de não mais pecar no futuro” (8). Nisso se vê a falsidade da afirmação: se, por um lado, “nada do que precede à justificação, nem a fé, nem as obras (incluindo a detestação do pecado), merece a graça da justificação” (9), por outro, a própria contrição é um dom de Deus e que é somente pela ação da graça que o homem é levado a receber a graça da remissão dos pecados, da santificação e renovação interior, seja pelo Batismo, seja pela absolvição sacramental (10). Bem resume Santo Agostinho: “Que mérito, então, o homem tem antes da graça, pela qual ele pode receber a graça e quando todos os nossos méritos são produzidos em nós somente pela graça, e quando Deus, coroando nossos méritos, coroa nada mais que seus próprios dons dados a nós?” (11).
“Mas essa opinião (que a missa é um sacrifício) eu rejeito como ímpia e blasfêma. Por quê? Primeiro, porque Cristo, de acordo com a Sagrada Escritura, teve que ser oferecido, e foi oferecido, apenas uma vez, em seus sofrimentos na Cruz” – Dr. Leonhard Hutter (12)
Aqui o luterano dá a entender que, na Santa Missa, estamos sacrificando Cristo novamente no altar. Já escrevi um artigo sobre isso aqui. Convém, contudo, pôr uma breve descrição do ensinamento da Igreja sobre esse ponto:
“A Eucaristia é, pois, um sacrifício, porque representa (torna presente) o sacrifício da cruz, porque é dele o memorial e porque aplica o seu fruto: Cristo ‘nosso Deus e Senhor […], ofereceu-Se a Si mesmo a Deus Pai uma vez por todas, morrendo como intercessor sobre o altar da cruz, para realizar em favor deles [homens] uma redenção eterna. No entanto, porque após a sua morte não se devia extinguir o seu sacerdócio (Heb 7, 24-27), na última ceia, “na noite em que foi entregue” (1 Cor 11, 13). […] Ele [quis deixar] à Igreja, sua esposa bem-amada, um sacrifício visível (como o exige a natureza humana), em que fosse representado o sacrifício cruento que ia realizar uma vez por todas na cruz, perpetuando a sua memória até ao fim dos séculos e aplicando a sua eficácia salvífica à remissão dos pecados que nós cometemos cada dia” (13).
Falando sobre o Decreto da Justificação do Concílio de Trento, Calvino diz:
“(…) A definição deles não contém nada além do dogma vulgar das escolas: que o homem é justificado parte pela graça de Deus e parte por suas próprias obras; logo revelam-se somente um pouco mais modestos do que Pelágio” – João Calvino (14).
Isso é um absurdo. “A nossa justificação vem da graça de Deus” (15). E ainda: “Assim, portanto, a nossa própria justiça não se estabelece como própria, como se de nós decorresse, e também não se ignora ou se repudia a justiça de Deus (Rom 10, 3). Esta Justiça é denominada a nossa, porque somos justificados por ela, que inere intimamente em nós [cân. 10 e 11]. E esta mesma é a de Deus, em vista dos merecimentos de Cristo infundida em nós” (16).
Eis o depoimento de um seminarista presbiteriano que se converteu ao Catolicismo enquanto estudava no programa de Mestrado em Divindade do Seminário Teológico Reformado (STR), em Washington D.C. Tendo escolhido permanecer até o fim de sua pós-graduação, ele diz:
“Muitas vezes eu fui perguntado se os professores do STR articulavam de forma precisa os ensinamentos da Igreja Católica quando os comparavam a tradição reformada. A resposta aqui é complicada. Não há dúvidas de que às vezes eu ouvia explicações falsas e grosseiras do que a Igreja Católica ensina. Por exemplo, na aula do Dr. Michael Horton (17) (…), com provavelmente cinquenta estudantes nela, ele condenou a posição do Vaticano II sobre a possibilidade de salvação daqueles que não professam a fé em Cristo. Horton ofereceu uma caricatura da posição católica em que sugeria que o Vaticano II ensinava que qualquer um que vive uma vida boa será salvo. Na verdade, o Vaticano II não ensinou nada desse tipo. Ainda que ele afirme a verdade de que alguns homens possam vir serem salvos sem um conhecimento consciente de Cristo como Salvador (uma verdade afirmada pela Confissão de Fé de Westminster da mesma forma, no caso de mortalidade infantil e retardo mental), o Concílio mantém com claridade que a salvação vem somente através de Cristo” (18).
O que o ex-seminarista protestante argumenta está escrito no seguinte trecho do Concílio Vaticano II:
“Com efeito, só Cristo é mediador e caminho de salvação” (19).
Por fim, recentemente eu escutava o debate “What still divides us? (O que ainda nos divide?)” (20), um debate de várias horas entre alguns dos mais distintos nomes do Catolicismo (Patrick Madrid, Dr. Robert Sungenis e Dr. William Marshner) e Protestantismo (Dr. Robert Godfrey, Dr. Rosenbladt e Dr. Michael Horton) americanos, sobre a questão da Sola Scriptura (Somente a Escritura) e da Sola Fide (Somente pela Fé), quando, em seu discurso de abertura, escutei o Dr. Robert Godfrey (21) dizer o seguinte:
“A Igreja Romana é uma falsa igreja por ter adicionado tradições humanas à Palavra de Deus. (…) Nossos oponentes nunca irão realmente definir ‘Tradição’ ou dizer qual é o seu conteúdo. ‘Tradição’ é uma palavra que pode ser usada numa grande variedade de sentidos: pode se referir a uma certa escola de entendimento das Escrituras (caso da tradição luterana); ou pode se referir a tradições supostamente oriundas dos apóstolos, que não estão na Bíblia; pode se referir a tradições que se desenvolvem na história da Igreja e que claramente não são antigas na origem. (…) Agora, o que os apologistas católicos querem dizer quando afirmam a autoridade da Tradição? (…) Alguns apologistas creem que toda Tradição vinculante fora ensinada pelos Apóstolos, mas outros creem que a Tradição evolui e se desenvolve através dos séculos na Igreja, de modo que há tradições necessárias à salvação que nunca foram conhecidas pelos apóstolos. É impossível saber qual é a real posição romana nessa questão.” (22)
Muitos erros. De modo algum a Igreja acrescentou tradições humanas à Palavra de Deus. Nem tampouco não definimos o que é a Tradição e qual o seu conteúdo.
“A Tradição de que falamos aqui é a que vem dos Apóstolos” (23). De fato, a Tradição é a transmissão oral da Palavra de Deus “pelos Apóstolos, que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, transmitiram aquilo que tinham recebido dos lábios, trato e obras de Cristo, e o que tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo” (24). Ora, essa transmissão oral é Palavra de Deus, conforme diz São Paulo: “E por isso precisamente damos sem cessar graças a Deus, porque, logo que ouvistes a Palavra de Deus, por nós pregada, a acolhestes, não como palavra de homens, mas, qual realmente é, Palavra de Deus, que exerce a sua eficácia em vós, os crentes” (1 Tes 2,13). Entre outros textos da Escritura a respeito da Tradição (I Cor 4,17; 1 Cor 7,17; 1 Cor 11,2; Rom 6,17; 1 Tim 3,15; 1 Tim 4,6.11; 2 Tim 1,13; 2 Tim 2,2; etc.). Enquanto a Escritura é a Palavra de Deus escrita, a Tradição conserva a Palavra de Deus, “confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos” (25).
Seu conteúdo encontra-se particularmente nos símbolos da fé (o dos Apóstolos, o Niceno-Constantinopolitano e o de Atanásio) e no unânime consenso dos Santos Padres, mas ainda nas profissões de fé (a profissão de fé tridentina, por exemplo), nas catequeses dos bispos (por exemplo, aquelas de São Cirilo de Jerusalém), nas liturgias das Missas, nos atos dos mártires, nos Concílios Ecumênicos e seus debates, nos decretos dos Papas e Concílios Provinciais, nos catecismos, nas fórmulas de oração (26).
A Escritura, por sua vez, jamais diz ser a única fonte de fé. Além dos textos citados, outros são conhecidos: Jo 20,31; 2 Tes 2, 15; 3,6; 1 Cor 15,3; 2 Tim 4,2-5; 2 Jo 12. Ele erra ainda ao dizer que as tradições necessárias à salvação não eram conhecidas pelos apóstolos. Ainda que algumas doutrinas, como as vemos hoje, não estivessem “completamente desenvolvidas” no primeiro século, a essência delas estava lá (27). O depósito da fé está contido na Tradição e na Escritura, e quando se fala em desenvolvimento do dogma, refere-se a uma maior compreensão das verdades que desde sempre estiveram naquele depósito (28). Uma ótima análise e refutação da acusação protestante sobre este assunto encontra-se aqui.
De fato, muitos não-católicos combatem um espantalho de Igreja Católica, crendo com firmeza estarem combatendo o que ela de fato crê e ensina. Isto confirma aquela famosa frase do grande bispo Fulton Sheen:
“Não existem mais de 100 pessoas neste mundo que realmente odeiem a Igreja Católica, mas há milhões que odeiam o que eles pensam ser a Igreja Católica” (Servo de Deus, Bispo Fulton Sheen).
(1) Post do Jimmy Akin em seu perfil do Facebook.
(2) Catecismo da Igreja Católica, n. 2157.
(3) Diretório sobre a piedade popular e a liturgia, art. 125.
(4) Hallmarks of Lutheran Identity, Alvin J. Schmidt, 2017.
(5) Catecismo da Igreja Católica, n. 971.
(6) ibid., n. 2096-2097.
(7) Compend of Lutheran Theology, Leonard Hutter, 1868.
(8) Catecismo da Igreja Católica, n. 1451.
(9) Concílio de Trento, Sessão VI, cap. 8.
(10) Catecismo da Igreja Católica, n. 1453; Concílio de Trento, Sessão VI, cap. 7.
(11) Letter to Sixtus, St. Augustine, JR 1452.
(12) Compend of Lutheran Theology, Leonard Hutter, 1868.
(13) Catecismo da Igreja Católica, n. 1366.
(14) Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, Volume 3, Tracts, Part 3, edited and translated by Henry Beveridge, Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1983, p. 108; reprinted from the same work, published by the Calvin Translation Society, Edinburgh, 1851. Citado aqui.
(15) Catecismo da Igreja Católica, n. 1996.
(16) Concílio de Trento, Sessão VI, Cap. 16.
(17) Protestante calvinista bastante conhecido nos EUA.
(18) Jeremy Tate, “Reflections – Graduating Catholic from a Reformed Seminary“.
(19) Concílio Vaticano II, Lumen Gentium, n. 14.
(20) Debate “What still divides us?”. Link aqui.
(21) Protestante calvinista. Presidente do Seminário Westminster na Califórnia.
(22) Debate “What still divides us?”, CD-01.
(23) Catecismo da Igreja Católica, n. 83.
(24) ibid., n. 76.
(25) ibid., n. 81.
(26) Pe. Bernardo Bartmann, Teologia Dogmática (Volume I), 1964.
(27) Dave Armstrong, “Refutando alegações contra o desenvolvimento da doutrina“. Tradução: Rafael Rodrigues.
(28) Catecismo da Igreja Católica, n. 84 e 94.
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